sábado, 9 de maio de 2009

GUARDIÃO

Ah! Se eu pudesse penetrar em teus pensamentos
viver em teus sonhos mais secretos
morrer em teus sentidos mais intensos
e finalizar de vez todos aqueles decretos,

que nos impedem de sermos
nós em nós, flores em ermos,
loucuras sem liturgias
e escravos da elegia.

Ah! Se meu amor criasse asas.
Iria até onde te refugias
seria teu guardião, tua morada,
e te guardarias em uma magia,

sem aranhas, sem insetos,
sem sacrifícios desonestos.
Só com meu amor e euforia
de aninhar-te em minha alegoria.

Ah! Se não tivéssemos mas amanhã,
se pudéssemos enfim nos pertencer.
Exorcizaria toda aquela manha
que um dia nos fez escurecer.

Lembraria-te dos gozos infindos,
dos tantos poemas ainda vindos,
das telas e notas a serem exploradas,
de nós dois e mais nada.

Nanda Braga

COMPOSIÇÃO

Meus dedos, feito folhas secas, tremem
e deslizam imperfeitos sobre a palheta.
E as cores que, depositadas na tela feito sêmen,
brotam e compõem magníficas silhuetas.

Meus ossos, tortos feito galhos, estão largados ao chão,
como resíduos daquele longo e intenso anoitecer,
pelos traiçoeiros e ruidosos ventos da outra estação,
sem que pudesse a devastação sazonal prever.

Meu corpo retorcido feito as árvores do Cerrado,
seco e rachado sobre o chão vermelho e quente,
aspira, como nunca, as águas de seu rio triunfado,
molhar a terra mosaicada e fértil, docemente.

Meus olhos, feito gigantescos vaga-lumes,
brilham perdidos dentro das noites escuras e frias
à procura de libélulas que os conduzam ao cume
das manhãs reluzentes e completas de euforias.

Meus pensamentos vazios percorrem o céu
como nuvens vadias, brindam em acrobacias
e fazem das águas a cair um verdadeiro escarcéu
que banha a face e os jardins das farroupilhas.

Meus passos não sabem onde vão chegar,
sabem que percorrem na direção trilhada
das migalhas de pão dos contos de ninar,
às grandes marcas numa mulher – talhada.

Nanda Braga

quinta-feira, 7 de maio de 2009

INSCRIÇÃO NA AREIA



O meu amor não tem

importância nenhuma.

Não tem o peso nem

de uma rosa de espuma!

Desfolha-se por quem?

Para quem se perfuma?

O meu amor não tem

importância nenhuma.

Cecília Meireles

SONETO XLIV

Saberás que não te amo e que te amo
posto que de dois modos é a vida,
a palavra é uma asa do silêncio,
o fogo tem uma metade de frio.

Eu te amo para começar a amar-te,
para recomeçar o infinito
e para não deixar de amar-te nunca:
por isso não te amo ainda.

Te amo e não te amo como se tivesse
em minhas mãos as chaves da fortuna
e um incerto destino desafortunado.

Meu amor tem duas vidas para amar-te.
Por isso te amo quando não te amo
e por isso te amo quando te amo.

Pablo Neruda

domingo, 3 de maio de 2009

MOTIVO

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
- não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
- mais nada.

Cecília Meireles

sábado, 2 de maio de 2009

ALMA


Se minha alma tivesse cor
seria da cor vermelha,
cor do sofrimento e do amor,
cor que corre nas veias,

cor das chagas de Cristo,
dos sonhos dos apaixonados,
da marca deixada como castigo
no peito dos, arredios, escravos.

Se minha alma tivesse cor
seria alegre como uma dança,
não seria azul como a noite
nem verde como a esperança,

seria de um vermelho intenso
como o nascer de uma criança.

Nanda Braga