quinta-feira, 20 de agosto de 2009

RECADO

Vi sua total e inacreditável covardia
de fingir que não me conhecia,
de não se permitir nem um oi de cortesia
e de fugir em sua, maestral, picardia.

CONVITE

Vem!
Faça de minha boca
teu abrigo
e teu repouso
meu único suspiro.

Vem!
E faça de meus sentidos
o nosso único
e majestoso
hino.

ATREVIMENTO

Acordei com as lembranças
ainda vivas da noite passada
que em um ato de coragem
ao meio de palavras e risadas,
eu, um único beijo, te roubei.

E foi tão bom sentir o gosto
dos teus lábios nos meus,
tão bom te sentir mais perto
como nunca havia sentido,
como nunca nos permitimos.

Que ao levantar ainda encantada,
com os olhos, um tanto, risonhos
e minha boca ainda amassada,
não sei dizer se tudo foi verdade
ou somente um, lindo, sonho.

domingo, 14 de junho de 2009

BEM NO FUNDO

No fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto

a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela — silêncio perpétuo

extinto por lei todo o remorso,
maldito seja que olhas pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais

mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos saem todos a passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas.

Paulo Leminsk

AMOR BASTANTE

quando eu vi você
tive uma idéia brilhante
foi como se eu olhasse
de dentro de um diamante
e meu olho ganhasse
mil faces num só instante

basta um instante
e você tem amor bastante

um bom poema
leva anos
cinco jogando bola,
mais cinco estudando sânscrito,
seis carregando pedra,
nove namorando a vizinha,
sete levando porrada,
quatro andando sozinho,
três mudando de cidade,
dez trocando de assunto,
uma eternidade, eu e você,
caminhando junto

Paulo Leminsk

EU

eu
quando olho nos olhos
sei quando uma pessoa
está por dentro
ou está por fora

quem está por fora
não segura
um olhar que demora

de dentro de meu centro
este poema me olha

Paulo Leminsk

QUANDO EU TIVER SETENTA ANOS

quando eu tiver setenta anos
então vai acabar esta minha adolescência

vou largar da vida louca
e terminar minha livre docência

vou fazer o que meu pai quer
começar a vida com passo perfeito

vou fazer o que minha mãe deseja
aproveitar as oportunidades
de virar um pilar da sociedade
e terminar meu curso de direito

então ver tudo em sã consciência
quando acabar esta adolescência

Paulo Leminsk

AÇO E FLOR

Quem nunca viu
que a flor, a faca e a fera
tanto fez como tanto faz,
e a forte flor que a faca faz
na fraca carne,
um pouco menos, um pouco mais,
quem nunca viu
a ternura que vai
no fio da lâmina samurai,
esse, nunca vai ser capaz.

Paulo Leminsk

JA ME MATEI FAZ MUITO TEMPO

já me matei faz muito tempo
me matei quando o tempo era escasso
e o que havia entre o tempo e o espaço
era o de sempre
nunca mesmo o sempre passo

morrer faz bem à vista e ao baço
melhora o ritmo do pulso
e clareia a alma

morrer de vez em quando
é a única coisa que me acalma.

Paulo Leminsk

sábado, 9 de maio de 2009

GUARDIÃO

Ah! Se eu pudesse penetrar em teus pensamentos
viver em teus sonhos mais secretos
morrer em teus sentidos mais intensos
e finalizar de vez todos aqueles decretos,

que nos impedem de sermos
nós em nós, flores em ermos,
loucuras sem liturgias
e escravos da elegia.

Ah! Se meu amor criasse asas.
Iria até onde te refugias
seria teu guardião, tua morada,
e te guardarias em uma magia,

sem aranhas, sem insetos,
sem sacrifícios desonestos.
Só com meu amor e euforia
de aninhar-te em minha alegoria.

Ah! Se não tivéssemos mas amanhã,
se pudéssemos enfim nos pertencer.
Exorcizaria toda aquela manha
que um dia nos fez escurecer.

Lembraria-te dos gozos infindos,
dos tantos poemas ainda vindos,
das telas e notas a serem exploradas,
de nós dois e mais nada.

Nanda Braga

COMPOSIÇÃO

Meus dedos, feito folhas secas, tremem
e deslizam imperfeitos sobre a palheta.
E as cores que, depositadas na tela feito sêmen,
brotam e compõem magníficas silhuetas.

Meus ossos, tortos feito galhos, estão largados ao chão,
como resíduos daquele longo e intenso anoitecer,
pelos traiçoeiros e ruidosos ventos da outra estação,
sem que pudesse a devastação sazonal prever.

Meu corpo retorcido feito as árvores do Cerrado,
seco e rachado sobre o chão vermelho e quente,
aspira, como nunca, as águas de seu rio triunfado,
molhar a terra mosaicada e fértil, docemente.

Meus olhos, feito gigantescos vaga-lumes,
brilham perdidos dentro das noites escuras e frias
à procura de libélulas que os conduzam ao cume
das manhãs reluzentes e completas de euforias.

Meus pensamentos vazios percorrem o céu
como nuvens vadias, brindam em acrobacias
e fazem das águas a cair um verdadeiro escarcéu
que banha a face e os jardins das farroupilhas.

Meus passos não sabem onde vão chegar,
sabem que percorrem na direção trilhada
das migalhas de pão dos contos de ninar,
às grandes marcas numa mulher – talhada.

Nanda Braga

quinta-feira, 7 de maio de 2009

INSCRIÇÃO NA AREIA



O meu amor não tem

importância nenhuma.

Não tem o peso nem

de uma rosa de espuma!

Desfolha-se por quem?

Para quem se perfuma?

O meu amor não tem

importância nenhuma.

Cecília Meireles

SONETO XLIV

Saberás que não te amo e que te amo
posto que de dois modos é a vida,
a palavra é uma asa do silêncio,
o fogo tem uma metade de frio.

Eu te amo para começar a amar-te,
para recomeçar o infinito
e para não deixar de amar-te nunca:
por isso não te amo ainda.

Te amo e não te amo como se tivesse
em minhas mãos as chaves da fortuna
e um incerto destino desafortunado.

Meu amor tem duas vidas para amar-te.
Por isso te amo quando não te amo
e por isso te amo quando te amo.

Pablo Neruda

domingo, 3 de maio de 2009

MOTIVO

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
- não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
- mais nada.

Cecília Meireles

sábado, 2 de maio de 2009

ALMA


Se minha alma tivesse cor
seria da cor vermelha,
cor do sofrimento e do amor,
cor que corre nas veias,

cor das chagas de Cristo,
dos sonhos dos apaixonados,
da marca deixada como castigo
no peito dos, arredios, escravos.

Se minha alma tivesse cor
seria alegre como uma dança,
não seria azul como a noite
nem verde como a esperança,

seria de um vermelho intenso
como o nascer de uma criança.

Nanda Braga